terça-feira, 20 de outubro de 2020

O Pomar

Esta história que eu inventei, foi nos verões que passava com meu irmão e meus primos em Piúma, litoral sul do Espírito Santo, que é uma zona rural. Eu criei depois de assistir O Jardim Secreto (1993) e tentei criar uma lenda urbana sobre um pomar e, sempre que podia, contava aos meu primo Attila e meu irmão, Armando Junior. Lógico que dei uma reformulada na história, mas a ideia permaneceu. Esperem que gostem!


O POMAR

Esta é uma história que contavam na região rural, ao sul do Espírito Santo. Dois irmãos e seu primo, todos os verões, iam para uma cidadezinha bem rural. O primo destes dois irmãos tinha uma casa, que conseguia hospedar, praticamente, toda a família deles. Mas os três eram como unha e carne. Iam para o rio tomar banho, jogavam bola no areal, perto da casa e iam, caçavam passarinhos juntos, pescavam juntos e iam a chácara da vizinha desfrutar do farto pomar que ela tinha.

No pomar da vizinha tinha laranjais, limoeiros, pés de carambola, goiabeiras, pequenos – mas fartos – amoreiras, jamelões, fruta-pão, jaqueiras, cajazeiras, cajueiros, mamoeiros, cacaueiros, ananás e abacateiros. Era uma grande variedade de frutas que ela permitia que eles desfrutassem até certo horário do dia. Um dia, sentados em uma área atrás da casa, se aquecendo perto do fogão de lenha em um dia chuvoso e desfrutando das frutas que colheram antes, o mais velho dos três meninos perguntou porquê não podiam colher frutas quando a noite caía e ela lhes contou:

- Quando éramos mais jovens, eu e marido ainda namorávamos, decidimos entrar no pomar, à noite, para ficar longe das vistas de nossas famílias. Foi um grande erro, pois o lugar ganhava vida depois do surgir da lua. Sons tenebrosos podem ser ouvidos, as árvores parecem querer te engolir. É o momento de descanso delas, então não é bom interromper.

Quando voltaram para casa, os três comentavam da história que a dona do pomar contara. O mais velho se sentia confiante, dizia não ter medo de nada. O irmão dele, tentava imitá-lo, mas ouvia-se o tremular de sua voz. Já o caçula dos três não fingia a temerança e não achava certo desafiar as recomendações. Então o mais velho o chamou de medroso e disse que entraria naquele pomar na próxima noite e queria ver quem o seguiria. Seu irmão, que o admirava, falou que iria com ele, mesmo com medo. O primo deles não se sentia tão confiante para isso.

No outro dia, depois de jogarem bola com os meninos da região, irem tomar banho no rio e pescarem, o mais velho disse que naquela noite eles iriam entrar no pomar. De forma reticente, seu irmão abanou a cabeça confirmando, já o primo caçula continuava incerto. Ao cair da noite, eles perceberam que os mais velhos estavam na sala, conversando e decidiram sair pelas portas dos fundos. Seguiram de cabeça baixa pela garagem e, sem fazer muito barulho, saíram pelo portão.

Adentraram pelo portão de madeira da chácara e ouviram o latido do cachorro que eles conheciam. Deram biscoitos para ele ficar quieto e seguiram em frente. Quando estavam de pé no portal da horta, o mais novo falou que dali ele não passaria e, novamente, o mais velho o chamou de medroso e puxou seu irmão – que parecia querer desistir, também – para dentro do pomar. Eles estavam de lanternas acesas, os três, mas o mais velho e seu irmão foram tão fundo no pomar que o breu tomou conta do lugar, sem conseguir enxergar o brilho da lanterna de seu primo. Então, de repente, sons guturais começaram a ser ouvidos, os dois sentiram espinhos dos limoeiros arranhando suas pernas e braços e, de repente, suas lanternas falharam. Do lado de fora do pomar, o primo deles ouvia os gritos dos dois e se desesperou. Correu para a casa de seus pais, chamando-os para irem ao pomar. Ele terminou acordando a dona da chácara e seu marido. Percebendo o que tinha ocorrido, os pais dos meninos foram até uma guarita, que ficava do outro lado da pista, no sopé de um morro e chamaram os guardas para ajudarem nas buscas.

Os pais, o dono da chácara e dois policiais, munidos de lanternas, entraram no pomar, mas estava muito escuro para poderem ir mais fundo. No outro dia, bem cedo, antes de sair para a roça, o dono da chácara entrou no pomar, para ver se encontrava os dois meninos perdidos, mas nada achou, além de suas lanternas e o boné que o mais velho usava. Ele levou o que achou até a casa do seu vizinho e entregou o que achou para os pais. Inconformados com isso, chamaram várias pessoas para buscar pelo pomar. Por dias procuraram, mas nada acharam.

Depois disso, ninguém nunca mais visitou o pomar. Ele se encontra abandonado, mas dizem que, à noite, ainda pode se ouvir os gritos assustadores dentro dele.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Uma estória simples

Bem, esta... estória - se assim posso chamá-la - foi escrita há... muito tempo por mim, por isso, peço desculpas se existe um exagero de um adjetivo e seu advérbio, mas é como eu a imaginei.


UMA ESTÓRIA SIMPLES

Um simples escritor chegou a um simples vilarejo aonde, simplesmente, desejava morar. Ele havia comprado uma simples casa, em uma simples rua e, um simples dia, viu uma simples jovem linda passar diante do seu simples portão e ela lhe deu um simples sorriso. Ele simplesmente se apaixonou pela jovem naquele simples momento que a viu. Descobriu aonde ela morava e, todos os dias, lhe mandava simples flores com uma simples mensagem: “Eu, simplesmente, estou apaixonado por você”. Foram dias, semanas, meses, mas ele nunca achou que era recíproco. Então, em um simples dia, ele decidiu, simplesmente, terminar com a sua vida. Ele foi enterrado no simples cemitério, atrás da simples igreja daquele simples vilarejo e, em uma simples lápide, estava escrito: “Um simples escritor que, simplesmente, decidiu deixar de viver”. Mas, todos os dias, com o passar do tempo, aquela simples jovem era vista colocando simples flores no túmulo do rapaz e um dia puderam a ouvir falar: “Se você tivesse simplesmente dito que me amava, simplesmente estaríamos juntos”.

O Porto

 Meus sonhos, minhas inspirações. Mais um conto para vocês - este é bem mais curto -, mas que achei interessante compartilhar. Espero que goste... e comentem!


O PORTO

Ele despertou em uma praça. Não lembrava o próprio nome, mas lembrava que estivera ali com seu filho. Que morava em uma ilha, nas proximidades, que tinha um barco e, ele e seu filho tinham ido para o porto comprar suprimentos... mas não lembrava do próprio nome. Algo estava confuso.

Saiu para procurar pelo filho e foi fazendo os passos que fizera antes. Primeiro, passou no bar que os dois tinham parado para beber e comer algo, mas não encontrou ninguém. Na medida que procurava as pessoas que conhecia, não encontrava ninguém, mas percebeu que o bar estava todo molhado. Saiu do bar e foi até o mercado, onde tinha ido comprar suprimentos. Suas compras ainda estavam no balcão, mas o rapaz que ficava no caixa não estava ali. Andou pelo local, gritando o nome do próprio filho, mas não o localizou. A preocupação começou a assolar sua cabeça. Desesperado, saiu do mercado, pensando, “depois venho pegar os suprimentos”, e foi até o posto policial, para pedir ajuda. Entrou no posto policial e não viu ninguém. “Não pode”, ele pensou, “Sempre tem um policial que possa nos atender”. Andou por todo o local e, como no bar, somente poças de água no chão.

Voltou para as ruas, gritando pelo nome do filho ou mesmo por ajuda. “Por que não lembro do meu nome?”, ele se questionou. Era impressionante, pois aquela era uma vila portuária e as pessoas, à noite, saíam para se divertir, mas não tinha ninguém, como se, do dia para a noite, aquilo se tornara uma cidade fantasma. O que mais o impressionava é que aparentava ter chovido na vila, mas ele não estava molhado. Sua cabeça latejava, “diga seu nome”, ele pensava – ou acreditava que estava pensando. Procurou em cada viela, em cada beco escuro e nada. “Filho, onde está você?”, ele gritou, quando voltou a praça, “Aonde está todo mundo!”. Então ele ouviu uma voz bem baixinha, “pai?”, e perto do chafariz, coberto com o casaco do pai, estava o jovem de 12 anos, “o que aconteceu?”, ele questionou. “Venha, temos de pegar as compras e voltar, sua mãe e suas irmãs devem estar preocupadas”. Os dois se deram as mãos e foram ao mercado. Chegando lá, perceberam poças d’água espalhadas pelo local. “Cadê todo mundo, meu pai?”, questionou o filho. Ele preferiu não responder, pegou o pacote de compras no balcão e saiu, em direção ao porto.

Chegando no pequeno barco, de relance, ele acreditou ver um rosto difuso nas sombras, uma mulher, que lhe sorriu, mas não era um sorrido cordial, ele percebeu algo de maligno. Seguiu com o barco, remando de volta para casa. Ao desembarcar na ilha, sua cabeça começou a latejar fortemente. “Pai, você está bem?”, perguntou o filho. “Pegue as compras e vamos para casa”, ele respondeu. Atracou a pequena embarcação e andaram em direção da própria casa. A cabeça do homem latejava cada vez mais. “O que está acontecendo comigo?”, ele se questionou, “E por que não me recordo do meu nome?”. Pensou em questionar ao filho, mas não queria parecer fraco diante da criança. Ele precisava se mostrar forte, era o homem da família. Ao entrar em casa, gritou por uma saudação, “Mulher, chegamos!”. A esposa veio, com ar de preocupação no semblante. “O que aconteceu com vocês?”, ela perguntou, “Passaram o dia todo fora. Saíram para as compras bem cedo e só retornaram agora. O que houve?”. Ele não quis responder, mas precisava se sentar, pois sua cabeça latejava muito e ele sentia uma tontura surgir. A esposa então disse, “Ezekiel, o que houve?”. “Ezekiel. Este é meu nome” e, então, veio a sua memória o que ocorrera naquele dia.

Conversara com sua esposa, bem cedo, que levaria o menino para fazer as compras dos suprimentos. Ambos pegaram o pequeno barco e ele colocou o filho para remar. “Você precisar criar músculos neste corpo franzino”, ele disse, “já está na idade de poder sair comigo para pescar”. Assim que ensinou o filho a amarrar a embarcação no porto, subiram para a cidade, mas, na beira da escada estava uma mulher maltrapilha. Ela lhe pediu um pouco de comida, mas ele preferiu ignorá-la. “Não dê atenção”, disse ao menino. A mulher lhe agarrou na roupa e ele a rejeitou. Ela novamente segurou na barra de sua calça e ele disse “vá arranjar um marido para sustenta-la. Não tenho e nunca terei nada para ti”, e quando ia retirar a mão dela de sua calça, ela o segurou e seu filho com uma força que ele não esperava que ela tivesse e a ouviu dizer:

- Por não ajudar, se amaldiçoará! Nunca se lembrará até seu nome alguém mencionar, e quando isso ocorrer a pessoa irá se desfazer “. – Repentinamente, ele viu sua esposa se tornando líquido. Roupas, olhos, cabelo, pele. Tudo virou líquido. Ele se desesperou, gritando e, correndo em sua direção, veio seu filho dizendo, “Pai, minhas irmãs. Elas viraram água”. O pescador lembrou o que ocorrera então. Como havia nascido e crescido naquele vilarejo, conhecia a todos e, com isso, aqueles que vinham em seu socorro ou que gritavam seu nome, terminavam se tornando líquido. A bruxa os amaldiçoara. A ele e seu filho, e nada poderiam fazer.



segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Em Chamas

 

Eu sou uma pessoa que acredita muito que devemos respeitar o Brasil. Respeitar as pessoas que estavam aqui antes de ser Brasil, respeitar aqueles que sabem viver com nosso ecosistema, sem abusar demais. Respeitar fronteiras e respeitar, antes de qualquer coisa, nossa biodiversidade.

O texto a seguir se baseia em um sonho que tive e, sinceramente, espero que gostem.

Silmara havia se formado há pouco tempo em Biologia e decidiu entrar para uma ONG voltada para ajuda às tribos indígenas e manutenção do bioma amazônico. A ONG era liderada por sua maior inspiração, Thereza Gouveia e, entregar para aquela organização era seu maior desejo.

Mesmo tendo nascido e crescido em uma comunidade carente, Silmara sempre desejou vivenciar a vida nas selvas tropicais brasileiras. Quando terminou sua pós-graduação, se inscreveu para várias organizações, mas sempre torceu pela de Thereza, mesmo que não fosse voltada para reserva ambiental, trabalhava em ambientes no interior do Amazonas, onde ela poderia testemunhar e ver os mais diversificados ambientes de fauna e flora do Brasil.

Thereza era uma antropóloga com um trabalho renomado e que lutava pelas tribos indígenas e quilombos em todo o território ao norte do país. Sua luta era tão acirrada que, por vezes, recebeu várias ameaças de morte e suas redes sociais eram inundadas de violência verbal e desmerecimento de seu trabalho. Mas isso não a fazia desistir, pois constantemente pessoas buscavam fazer parte do seu empreendimento, que não visava lucros, somente auxílio e apoio a essas sociedades discriminadas. Quando ela entrevistou Silmara, lhe questionou o motivo dela querer fazer parte da organização – ela sempre fazia isso com todos os cientistas que desejavam embarcar naquela empreitada, principalmente porque não era algo com glamour, pelo contrário, as pessoas tinham de enfrentar os ambientes mais inóspitos, dormindo em barracas improvisadas, sendo picadas por mosquitos e formigas e correndo riscos com pessoas que não desejavam elas ali. Silmara a impressionou na entrevista, pois falou de seu amor pela fauna e flora, de sua busca pela preservação por aquele tipo de ambiente.

Silmara lhe contou sobre sua origem humilde. Sua mãe era funcionária doméstica que não tinha nada além do fundamental e seu pai trabalhava como operários em construções, as vezes fazendo bicos para completar a renda familiar. Eles nunca pensaram que um dia teriam uma filha na universidade, mas sempre a incentivaram a estudar bastante para ter um futuro melhor que o deles. Silmara era a segunda filha de cinco. O primeiro, um menino, terminou se envolvendo com o tráfico de drogas e morreu novo, o que deixou sua mãe muito abalada e temerosa por seus outros filhos. Quando Silmara começou a demonstrar interesse por cuidar de plantas, seus pais pensavam que ela poderia trabalhar em uma floricultura. Ela chegou a trabalhar em uma, como jovem aprendiz, mas isso somente lhe serviu para juntar dinheiro quando fosse fazer universidade. Ela contou o que desejava fazer na universidade e seus pais a ajudaram a pagar um cursinho noturno. Ela passou na universidade e quando ela chegou em casa – toda suja, pois sofrera trote quando foi se matricular – sorrindo, eles ficando orgulhosos. Foram quatro anos que ela sofreu muito, principalmente porque precisava encarar ônibus lotados de manhã bem cedo. Às vezes, levando pequenos lanches, pois não tinha condições de pagar nem um almoço no restaurante da universidade. Usando materiais, algumas vezes, precários, pois não tinha como comprar os seus instrumentos de uso, precisando contar com os da universidade. Mas foi gratificante a colação de grau e a formatura. Logo depois embarcou em uma pós-graduação de Biologia Vegetal, com bolsa patrocinada pela universidade. Chegou a trabalhar como assistente de seu orientador, mostrando que era aquilo que ela sempre desejou. Teve uma excelente nota no seu TCC e, logo depois, seu orientador preparou cartas de recomendação e pediu que ela fizesse mestrado. Mas Silmara desejava ir para a floresta, onde teria contato direto com o ambiente da flora que desejava, além de conhecer mais daqueles que cultivam e vivem naquele ambiente.

Thereza não entendia o que viu naquela jovem, mas gostou dela de imediato e colocou-a sob sua tutela. Ciências diferentes, mas objetivo semelhantes, Thereza logo levou Silmara para uma reserva indígena que vinha precisando de ajuda, pois estava ameaçada por madeireiros que desejavam explorar o ambiente que circundava a reserva e sabiam que seria impossível enquanto eles permanecessem ali.

Os indígenas sofreram ameaças, tiveram membros da tribo desaparecendo, ataques noturnos as suas reservas. Mas, lógico, não tinha como provar nada contra as madeireiras. Sabendo dos ataques as colheitas e suprimentos dos indígenas, Thereza junto um grupo de ativistas de sua organização e partiu para ajuda-los com o que poderia. Recorreu a conhecidos para fornecer alimentos orgânicos e material biodegradável, que manteria a aldeia até eles se restabelecerem. Silmara ajudou com as sementes que seriam mais úteis para o cultivo nas tribos, como banana, milho, abacate, guaraná e mandioca. Ela fez a seleção, separação e cultivo, pois desejava levar provetas, facilitando e agilizando o cultivo.

Depois de meses conversando com as empresas e separando o material, o grupo selecionado por Thereza embarcou em um ônibus locado e partiu em uma viagem de cinco dias. Silmara ficou fascinada por aquilo, pois poderia testemunhar ambientes agrícolas e locais que somente vira em documentários ou fotos na universidade. A cada parada, Silmara via se suas provetas estavam bem, pois precisavam de atenção constante quanto o ambiente agressivo que estavam enfrentando.

Assim que chegaram à tribo, Thereza foi falar com o cacique e pedir sua permissão para desembarque e, com ajuda de membros das tribos, tudo foi desembarcado mais rapidamente. Com orientação e muito cuidado, as provetas foram levadas para fora do ônibus. No outro dia começariam a plantá-las.

Horas depois de se alojarem em uma maloca, chegou a reserva dois jipes do exército com DEZ soldados, sendo o tenente deles um conhecido de Thereza. Ela, junto com o cacique e o pajé, foram recebe-los. Silmara ficou impressionada com aquilo.

Ela conhecia um pouco da história de Thereza. Sabia que ela era filha de um coronel da reserva e que sua mãe era uma pessoa ligada as causas sociais. Thereza se formara em Ciências Sociais, mas se dedicou a Antropologia e, após a morte de sua mãe, usou dos seus contatos para ajuda-la nas suas próprias causas. Já, após o falecimento de seu pai, usou da pensão por morte para investir de várias formas, assim não precisaria passar dificuldades, e manteve contato com vários militares, que sempre corriam em seu socorro, para ajudar na sua proteção e de sua equipe.

Os soldados armaram barracas nos limites das tribos, pois não queriam interferir muito no trabalho que seria desenvolvido.

No dia seguinte, depois de sua primeira noite em um ambiente desconhecido, Silmara começou as atividades com as provetas. Percebendo que os indígenas não entendiam o que ela pretendia, contando com um tradutor, ela lhes explicou que aquelas pequenas plantas agilizariam no cultivo e na colheita, mostrando cada um dos brotos, mas, em especial, os de guaraná. Seu trabalho de pós-graduação se concentrou na domesticação que os indígenas desenvolveram com o guaraná, então ela estava ansiosa pelos plantios destas provetas.

Enquanto isso, Thereza conversava com o cacique, o pajé e o tenente sobre os ataques à tribo. Eles explicaram que empresas madeireiras têm destruído grande parte das árvores nas proximidades, sem respeitar os limites territoriais da tribo. E, como principal intuito de expulsá-los de sua reserva, sumiram com grandes caçadores da tribos, deixando-os sem condições de caça – algo que estava escasso há algum tempo, pois os animais fugiam ou eram capturadas ou era mortos com o desmatamento – e, os ataques mais recentes foram às plantações e aos galpões com os produtos colhidos e processados pelos membros da tribo. O pajé também falou que teme pelas crianças, que não podem mais ir ao rio se banhar, sozinhas, e teme que o poço possa secar, já que ele viu a madeireira fazendo barreira do leito do rio. O tenente ouviu àquilo tudo e prometeu que averiguaria a situação, mas que eles estariam seguros, enquanto seus homens estivessem ali. Ao saírem da reunião com o pajé, Silmara viu Thereza se despedir do tenente com um selo nos lábios e questionou ao tradutor que a ajudara se eles eram namorados, pois nunca soube que Thereza tivera um relacionamento. O tradutor lhe disse que eles haviam sido casados, quando Thereza era mais jovem. Não tinha sido uma cerimônia glamourosa, somente um casamento no civil. Mas, desde que Thereza iniciou suas lutas pelos direitos de nativos brasileiros e dos quilombolas, perceberam que era uma relação impossível, e se divorciaram dois anos após o casamento.

Thereza não abria muito este lado de sua vida, então era algo que não se encontraria em redes sociais ou canais de notícias. Para a antropóloga era melhor divulgar seu trabalho do que sua vida pessoal. Ela sabia que, devido a amplitude das redes sociais e das pessoas gostarem de fuxicar a vida dos outros isso poderia vazar, mas somente se preocuparia quando acontecesse.

Até o final do dia, contando com a ajuda dos membros da tribo, Silmara conseguiu plantar mais da metade de suas provetas. Demorou, pois muito a paravam para lhe perguntar que planta era aquela, e ela não pode contar com eles o dia inteiro, pois tinham outros afazeres na tribo que não podiam ser deixados de lado. À noite, as índias haviam preparado um maravilhoso jantar – melhor do que o almoço, que também tinha sido ótimo – com os suprimentos nutritivos que Thereza trouxera. Quando iam se recolher na maloca, Silmara foi procurar Thereza, que estava cercada de mulheres indígenas, conversando. Elas pareciam fascinadas pela cor da pele de Thereza e de Silmara. Falavam que parecia a cor da noite e que eram abençoadas por Jaci – Silmara ouviu isso o dia inteiro e ficou maravilhada ao saber quem era Jaci. Sentou junto com as índias para ouvir as histórias de Thereza. Era fascinante poder conhecer mais um lado de sua ídola. Quando as índias se afastaram, ficaram somente as duas e Silmara quis insistir com o assunto sobre o tenente do exército que deixou oito de seus homens cuidando deles e da tribo. Thereza sorriu, parecendo acanhada – Silmara mencionou o beijo dos dois.

Ela contou que, quando tinha 20 anos, seu pai havia sido transferido para um pelotão na região norte do país e lá ela conheceu um jovem sargento que foi muito gentil com ela. Sabendo que Thereza havia estudo ciências sociais na universidade, havia se pós-graduado em Antropologia Social e tentaria mestrado na mesma área, o sargento a levou para conhecer um quilombo ali perto, que o exército ajudava com suprimentos. Dali por diante os dois começaram um romance que terminou em casamento. O pai dela terminou sendo transferido para a região Centro-Oeste do país, mas Thereza permaneceu ali, com o marido. Passado dois anos, Thereza percebeu que havia adiado demais sua ambição, mas era algo que seu marido também havia percebido e ele a chamou para conversarem. Dessa forma, em comum acordo, os dois decidiram se divorciar. Thereza não era tão conhecida, então deixou isso reservado somente entre seus pais e o pelotão em que vivera. Sabia que isso um dia viria a público, como aconteceu quando descobriram que ela foi dependente do fundo da pensão por morte do pai, julgando-a por isso. Mas ela somente se preocuparia com aquilo quando ocorresse, precisava se concentrar com seu trabalho.

A forma como Silmara ouviu aquele relato era como uma pessoa deveria agir quando tivesse uma conversa pessoal com um cantor famoso, ou um escritor consagrado. Para ela, Thereza era uma pessoa fabulosa e interessantíssima. Sim, ela sabia da diferença de ambas em seus estudos, mas a luta de Thereza ia além das tribos, pois sabia que a manutenção dos indígenas e quilombolas coincidiria com a preservação da natureza a sua volta.

Tanto os indígenas quanto os quilombolas exploram o ambiente de forma saudável, respeitando o ambiente da fauna e da flora e a biodiversidade existente, sem excessos. As tribos e os quilombos sabem que dependem da natureza para sobreviver, então busca “domesticá-lo” e se adaptam a ele.

Os dias correram de forma tranquila, sem intromissões de madeireiros, pois temiam o exército fronteirando a reserva. Mas, após seis meses, o tenente amigo de Thereza voltou a reserva e lhe disse que não poderia manter mais seus homens auxiliando. “Ordens de cima”, ele disse, “Temos de deixa-los por conta própria, concluiu. Thereza conhecia este tipo de situação, não era uma novidade perder apoio, pois o governo não achava que reservas indígenas ou quilombos merecessem proteção contra ataques. Ela então foi com seu amigo até o quartel, pois queria entrar em contato com amigos que ajudariam na proteção. Quando retornou, avisou a todos que eles demorariam uma semana para chegar, e Silmara pode sentir a tensão cair sobre seus colegas. Alguns sabiam o que isso poderia significar, outros, como Silmara, estavam nesta aventura pela primeira vez.

Quando a noite caiu, quase ninguém conseguiu dormir, até que sentiram o cheiro de mato queimado. Quando saíram, viram animais correndo em desespero e, mesmo sendo o momento mais escuro da noite, o céu acendia em laranja e amarelo. Os responsáveis por aquilo não desejavam mais expulsar os indígenas, mas sim queimá-los de forma derradeira. Um grande desespero se abateu sobre todos, pois eles se viam cercados por enormes piras de fogo incandescente. O calor era insuportável, mas precisava ser contido. Silmara somente conseguia pensar nas plantações e decidiu correr para lá. Thereza e outros gritaram para ela, mas foi sem sucesso. Quando Silmara chegou as plantações, viu seu trabalho se tornando cinzas e o fogo parecia desejar lamber sua face. Um de seus colegas a abraçou e carregou dali, pois precisavam dar um jeito de sair dali.

Quando os dois voltaram para o grupo, o pajé já havia iniciado um grupo que retirava água do poço para jogar nas chamas e, vendo isso, Thereza fez sua própria fileira, para ajudar. Silmara e seu colega entraram na fileira e começaram a jogar água em determinado ponto das chamas. Todos saíram das malocas e se reuniram no centro da aldeia. As primeiras malocas consumidas pelas chamas, não demoraram muito para cair. Os chumaços inflamantes alçaram voo até as outras malocas e a aldeia parecia perdida.

 Thereza correu para seus equipamentos e pegou um rádio para entrar em contato com o quartel do exército, mas a única coisa que conseguiu foi que eles estavam de mãos atadas.

O medo era desesperador e as malocas foram totalmente dizimadas. Gritos assustadores vinham das crianças e dos jovens, principalmente. O fogo começou a se extinguir no começo do amanhecer, pois não foi expelido para o interior da floresta. Fora calculado para consumir somente o interior da aldeia. Quando o sol começou a aquecer a todos, alguns já encontravam quase desidratados e com vários tipos de queimaduras. Alguns suprimentos médicos sobreviveram e, com isso, os feridos foram cuidados. As pessoas que estavam nas fileiras não se desidrataram muito, pois um dos colegas de Thereza era bombeiro e recomendou que eles se molhassem antes de tentar conter as chamas, o que os manteve somente com um tipo de bronzeado.

Silmara nunca testemunhou nada parecido. Seu rosto estava sujo de fuligem e o calor que enfrentara foi insuportável. Quando a adrenalina baixou, ela sentou no chão e chorou, até sentir uma mão sobre seu cabelo e olhou para cima, vendo Thereza. Ela sentou ao seu lado. Seu rosto também estava bem sujo, seu cabelo parecia ter sido tingido, devido as cinzas e ela tinha uma queimadura no braço direito. Na tentativa de acalentar os ânimos de Silmara, ela lhe contou uma história que havia ocorrido com ela cinco anos atrás, quando estava em um quilombo que estava em um terreno desejado por agropecuários. Ela viveu com eles por um ano inteiro e testemunhou atrocidade dos mais diversos tipos, mas a pior foi quando o quilombo se viu cercado de grileiros armados e eles disparavam para todos os lados, em tiros cruzados. Ela vira crianças serem feridas, mortas. Pareciam mosquitos mortais, devido aos zumbidos das balas. Ela tinha suas marcas de memória daquele dia. Levou dois tiros, um acertou em seu ombro e o outro na parte de trás de sua coxa. Eles dispararam até acabar as balas e foram embora. No final, vários feridos e seis pessoas mortas. Aquilo virou notícia mundial, repercutiu em todo o Brasil, mas não teve presos. Alguns pensaram que, depois daquilo, Thereza desistiria de continuar sua luta, só que foi o contrário, intensificou ainda mais tudo o que ela acreditava. Ela foi ao Congresso Nacional, conversar com os Deputados e Senadores. Se tornou ativa em redes sociais para mobilizar as pessoas e, mesmo as ameaças e as provocações, não eram o suficiente. Depois de sobreviver a um fogo cruzado, palavras ofensivas eram pequenas demais. Thereza explicou para Silmara que, no momento que ela deixasse esmorecer sua luta, seria o momento em que estaria dentro de um caixão. Também disse que entenderia se Silmara decidisse desistir, mas que ela precisava entender que sempre seria bem-vinda a continuar.

Horas depois um caminhão do exército chegou à aldeia e, junto dele, o ônibus de viagem do grupo de Thereza. O coronel falou com o cacique e o pajé que estavam ali para realoca-los, pois a reserva havia sido reposicionada para outro local. Thereza foi ouvir a conversa e sabia que nada poderia ser feito. Foi decepcionante para Silmara. Passou por sua cabeça que aquela luta era inútil e sem cabimento. Eles faziam aquilo tudo e depois viam tudo se perder. Por que continuar a lutar se nada é feito? Olhou para Thereza que, mesmo com aquela queimadura no braço, continuava a ajudar a tribo. Olhou para todos que, mesmo sofrendo com tudo que passaram, ainda estavam de pé e lutando por mais um dia, ela queria entender e percebeu que não seria desistindo que descobriria. Levantou de onde estava e, tentando limpar as lágrimas da melhor forma possível, começou a ajudar a todos, pois precisavam continuar a luta.